Orgãos sob medida no corpo humano: você pode ter um 'porco pessoal' e um pênis reconstruído a partir de um dedo
Quando eu era criança, assistia a The Six Million Dollar Man. Nos créditos, Steve Austin cai de uma aeronave e a frase ecoa: 'we can rebuild him, better than he was before. Better. Stronger. Faster.' Hoje, essa ideia deixou de ser ficção: a ciência já avança em regeneração, com tecidos e órgãos cultivados a partir de células próprias ou de células de animais. Alguns relatos falam em próteses super-humanas capazes de coisas de cinema, desde dobrar origami até escalar rochas, e pesquisadores já imprimem partes do corpo em laboratório. Especialistas dizem que estamos a menos de dez anos de bioprinting de órgãos humanos. Esse é o tema central do que pesquiso para o meu livro Replaceable You, que explora como esse campo pode transformar o que chamamos de corpo humano. Mary Roach passou dois anos estudando medicina regenerativa para o seu livro — Replaceable You — e as descobertas são tão emocionantes quanto desafiadoras.
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O sonho de ter um 'porco pessoal': xenotransplantação e porcos geneticamente editados
A progressão é impressionante: já há transplantes de corações, rins e fígados de porcos com genes editados em pacientes com falência de órgãos, ganhando tempo até que um órgão humano adequado esteja disponível. Em março de 2024, um rim de porco gene-editado foi transplantado em um paciente no Massachusetts General Hospital, com um segundo transplante no mês seguinte. Os pacientes sobreviveram cerca de sete semanas, mas esse tempo não foi suficiente para encontrar um órgão humano utilizável. Essa linha de pesquisa, conhecida como xenotransplantação, já alimenta a ideia de um 'porco pessoal': um animal com genes ajustados para corresponder ao seu corpo — pele, rins, coração — pronto para ser utilizado como peças de reposição. Em Chengdu, China, o professor Yi Wang descreve o conceito de quimera como o uso do porco para cultivar órgãos humanos. A técnica envolve editoração genética com CRISPR para mexer no mapa genético do porco e, a partir de células-tronco humanas pluripotentes, preencher espaços vazios para gerar um órgão humano dentro do porco.
Do dedo ao pênis: reconstrução penile por meio de transplante de dedo
Na Geórgia, o jornal Khirurgiia relata um caso de reconstrução do pênis a partir do dedo de um paciente. A cirurgia foi realizada pelo médico Iva Kuzanov, que, segundo a descrição, retirou o dedo médio da mão esquerda — do dedo até a área do pulso — e usou pele das axilas para cobrir a nova estrutura. O uretra é passado pela nova abertura, e os nervos e vasos sanguíneos são reconectados. O paciente, com 60 anos na época, tinha a função de micção e possível penetração afetadas pelo câncer. A cirurgia devolveu as funções básicas, e a esposa declarou estar «muito feliz». Os médicos não têm clareza sobre a possibilidade de orgasmo imediato, mas estudos sugerem que, com o tempo, zonas erógenas podem se desenvolver na nova estrutura e o orgasmo pode chegar a uma intensidade próxima do normal.
Próteses, bioprinting e pele de peixe: o que já é real na prática clínica
A narrativa de Replaceable You também mostra as aplicações práticas que já mudam vidas. Judy Berna, 58 anos, escritora do Colorado, pediu a amputação do pé esquerdo em 2004, quando tinha 37 anos, porque o pé era uma fonte de infecções e dores. Hoje, com uma prótese avançada, ela pode realizar atividades como escalada, surfe e corrida, graças a dispositivos de fixação específicos para cada atividade. As próteses de braço vêm com encaixes para segurar instrumentos de música, ou para atividades como golfe e bilhar, além de adaptações para tricô, origami, e até uma pá giratória para limpeza de casa. Há o que se chama de “autografting” — usar pele do próprio corpo para cobrir feridas — e, em paralelo, a ideia de xenograft, pele de outras espécies, como o peixe-cod de origem islandesa, para reduzir inflamação em queimaduras. Nos EUA, a pesquisa sobre bioprinting avança, com tentativas de imprimir orelhas e até músculos cardíacos em estruturas tridimensionais, usando células vivas e a matriz extracelular para sustentar o tecido. Além disso, o pesquisador Adam Feinberg, da Carnegie Mellon, mostra que é possível imprimir músculos do coração com a arquitetura certa para que as células se organizem e batam de forma coordenada. Já os órgãos inteiros ainda parecem longe, com estimativas de que levará mais de uma década até a implantação de órgãos bioprintidos funcionais em pacientes. Em aplicações de pele, há avanços como o uso de pele de cod (peixe) para curar queimaduras, que pode ajudar a reduzir inflamações quando o tecido humano não é suficiente. Esses passos, ainda experimentais, caminham para um futuro em que qualquer pedaço do nosso corpo pode, em teoria, ser substituído por tecidos, órgãos ou soluções criadas sob medida.
Células-tronco pluripotentes (iPS) e o que vem pela frente
Um avanço decisivo é a possibilidade de criar novas células saudáveis do zero, a partir de células-tronco pluripotentes. Em 2006, Shinya Yamanaka mostrou como reprogramar células adultas para o estado pluripotente, dando origem às células iPS. Hoje, pesquisadores já demonstram que é possível orientar células iPS a se tornarem, em teoria, qualquer tipo celular de que o paciente precise. Existem ensaios clínicos com células da retina, células pancreáticas e células cardíacas derivadas de iPS, abrindo vias para tratar diabetes, falência cardíaca e até intervenções estéticas como a calvície. Dr. Kevin D’Amour, diretor científico da Stemson Therapeutics, afirma que não estamos falando de imprimir órgãos inteiros ainda. Contudo, ele imagina um futuro em que pessoas terão células iPS criadas e armazenadas, tal como hoje se guarda sêmen e óvulos. Além disso, a ideia é gerar células capazes de formar folículos capilares — dermal papilla cells e queratinócitos — para tratar a calvície. A ciência atualmente não promete órgãos inteiros de prateleira amanhã, mas aponta caminhos para cirurgias menos invasivas e substituições parciais que melhoram a qualidade de vida. Os testes com iPS mostram que o mundo está na fronteira entre a medicina personalizada e a bioengenharia de tecidos, com aplicações que vão desde a regeneração de pele até a cura de doenças graves, em um horizonte de anos, não de dias.