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Achas que conheces Hans Christian Andersen? Quatro especialistas escolhem os contos de fadas mais estranhos dele para ler neste Natal

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Hans Christian Andersen é um dos escritores mais estimados da Dinamarca — um mestre do conto de fadas literário cuja influência se estende muito além de A Pequena Sereia, As Roupas do Imperador e os outros clássicos que muitos de nós conhecemos na infância. Nascido em 1805 em Odense, na ilha de Funen, Andersen era filho de um sapateiro e de uma lavadeira analfabeta que se tornaria um autor que escreveu em vários géneros — romances, diários de viagem, poemas e peças. Mas nos seus contos curtos ele criou uma forma única da sua autoria: emocionalmente ousada, estilisticamente inventiva e rica em encanto e mordacidade existencial. Embora nem todas as suas histórias tratem de inverno ou Natal, o nome de Andersen tornou-se intimamente associado à época festiva em todo o mundo. As suas histórias têm sido lidas em voz alta há gerações, adaptadas para inúmeras encenações de inverno e filmes, e voltam a cada ano pela sua fusão de encantamento, melancolia e imaginação moral. Elas lembram-nos que a época não é apenas sobre brilho e celebração, mas também reflexão, esperança e os pequenos milagres frágeis de ser humano. Assim, com os dias a encurtar, pedimos a quatro especialistas de referência em Andersen que escolham uma história que considerem perfeita para ler — ou reler — neste Natal. As suas escolhas podem não ser os contos de Natal com que associamos Andersen. Mas mostram o autor no seu momento mais profundo e lúdico — e oferecem novas perspetivas sobre a sua escrita.

Achas que conheces Hans Christian Andersen? Quatro especialistas escolhem os contos de fadas mais estranhos dele para ler neste Natal

A Story of a Mother 1847 uma história que desafia a estrutura dos contos de fadas

Escolher uma única história de Andersen como favorita parece quase impossível. Existem tantas obras notáveis, e a minha favorita costuma ser a que mais recentemente revisitei. Ainda assim, algumas histórias regressam a mim repetidamente, tanto no pensamento como na investigação. Uma dessas é A História de uma Mãe, publicada pela primeira vez em 1847. É um conto fantástico em todos os sentidos. Inclui elementos clássicos de conto de fadas: uma protagonista — a mãe — que deixa a casa e enfrenta provações, ajudantes que a guiam e um antagonista final, a Morte. No entanto, Andersen desafia essa estrutura: os ajudantes exigem preços elevados e o antagonista poderia até ser visto como um tipo de ajudante. A história também reflete o fantástico, como visto na ficção moderna, através da sua qualidade onírica e do seu final aberto perturbador, onde a mãe finalmente permite que a Morte leve o seu filho para o desconhecido. Esta história é profundamente comovente. Retrata as distâncias desesperadas que um progenitor fará para proteger uma criança e a rendição esmagadora quando confrontada com um destino irreversível. A capacidade de Andersen de capturar este sofrimento parental de forma tão vívida, apesar de nunca ter sido pai, é marcante. O tema da criança a morrer era comum na arte e na literatura do século XIX. De facto, o seu primeiro poema conhecido, aos 11 anos, foi escrito para consolar uma mãe enlutada. Mais tarde, em 1827, outro poema que ele escreveu, The Dying Child (A Criança Moribunda), foi publicado anonimamente e amplamente traduzido. A linguagem e a narrativa de A História de uma Mãe são características de Andersen. Nos primeiros parágrafos, o tema está claro e apresenta a linguagem rica em imagens de Andersen: "The old clock whirred and whirred, the great lead clockweight slid straight down to the floor, boom! and the clock too stood silent." Apesar de Andersen já ter escrito sobre crianças que morrem antes, ele lutou com o fim desta história, mesmo na cópia manuscrita que entregou ao impressor. A sua primeira versão seria um final feliz: a mãe acorda para descobrir que tudo era um sonho. Imediatamente riscou isso e substituiu-o por: “And Death went with her child into the ever-flowering garden”. Ainda insatisfeito, trocou “ever-flowering garden”, um sinónimo de paraíso, por “the unknown land”. Um crítico dinamarquês descreveu recentemente essa mudança criativa como “how to punk your sugar-coated sentiment into salty liquorice” — uma metáfora adequada para a recusa de Andersen em contentar-se com sentimentalismo. Hoje, a história não é tão bem conhecida quanto outras, mas a sua influência na altura foi inegável. Foi traduzida para o bengali já em 1858 e tornou-se popular na Índia. Quando Andersen fez 70 anos, em 1875, uma das suas dádivas foi uma edição poliglota da história traduzida para não menos que 15 línguas — um testemunho do seu alcance global. Pode ler a versão completa de A História de uma Mãe, aqui.

A Story of a Mother 1847 uma história que desafia a estrutura dos contos de fadas

The Comet 1869 uma viragem de Andersen para a prosa poética que confronta o tempo humano com o cosmos

Não houve cometas espetaculares no céu em 1869, mas o ano distingue-se na literatura graças a The Comet. O conto reflexivo de Andersen sobre o cosmos e a alma começa de forma simples. Um rapaz faz bolhas enquanto, à luz de uma vela, a mãe procura sinais sobre a vida do filho. O encanto infantil e a superstição convivem na sua casa. Mais de 60 anos passam. O rapaz tornou-se um idoso mestre na escola da aldeia. Ele ensina história, geografia e astronomia a uma nova geração, trazendo cada disciplina com vigor. A ciência não destruiu o seu encanto; pelo contrário, intensificou-o. Então, a mesma cometa periódica retorna. O que faz The Comet tão duradouro é, paradoxalmente, a sua forma quieta e despretensiosa. Em obras anteriores, Andersen enfrentava um dos grandes medos da sua era: que uma cometa pudesse atingir a Terra e acabar com a civilização humana. Respondia com comédia ou com precisão factual, mas nenhum desses caminhos foi comovente. Em 1869, ele afastou-se do humor e do argumento intelectual e avançou para a prosa poética. O significado emergiu agora pela sugestão, em vez do debate. Ele também abandonou o modo romântico da juventude, em que a lua, a estrela da manhã e outros corpos celestes comentavam diretamente sobre assuntos terrenos. Parte da minha fascinação por este conto reside nas quatro cópias sobreviventes. Andersen foi desenvolvendo a narrativa progressivamente, desde uma cena pitoresca numa sala de aula de uma aldeia até uma história de vida com alcance cosmológico genuíno, o que se vê em cada versão da história. Diz-se frequentemente que a vida humana é apenas um relance face ao tempo astronómico. Na época de Andersen, as pessoas citavam a expressão latina homo bulla: o ser humano é apenas uma bolha de sabão. A isto, na sua segunda versão, Andersen acrescentou a ideia da cometa. Contra a brevidade da bolha, ele o colocou o arco vasto da cometa — e com ele, a pergunta de para onde a alma humana viaja quando deixa o corpo. Andersen alcançou o seu ponto de viragem narrativo no final de janeiro de 1869 através de uma mudança tanto no tema como na estrutura. No terceiro manuscrito, ele acrescentou um parágrafo final quase idêntico ao início. Este círculo narrativo casa com o que está em jogo: “Everything returns!” (Tudo retorna!), ensina o mestre da escola, seja em relação às cometas periódicas ou aos eventos históricos. E, ainda assim, o conto termina imaginando o que não retorna: “the soul was off on a far larger course, in a far vaster space than that through which the comet flies” (a alma partiu para um curso muito mais vasto, num espaço muito maior do que aquele pelo qual a cometa voa). Convida-nos a olhar para o alto com a abertura de uma criança. E levanta questões profundas sobre o que significa ser humano, tanto neste mundo como, para leitores inclinados espiritualmente, no que quer que possa existir para além dele. Pode ler a versão completa de The Comet, aqui e ouvir um podcast sobre a história aqui.

The Comet 1869 uma viragem de Andersen para a prosa poética que confronta o tempo humano com o cosmos

The Shadow 1847 uma inversão magistral dos contos de fadas

The Shadow de Hans Christian Andersen foi publicado pela primeira vez em 1847. Em a explicar, de certa forma, é o conto mais sombrio de Andersen. O personagem que o leitor julga ser o protagonista só é conhecido como “o homem culto”, uma figura sem nome, enquanto a sua sombra — que se separa dele — dá ao conto o seu próprio título. No final da história, a sombra executa o homem culto e casa com a filha de um rei, sugerindo que irão governar o país dela juntos. Assim, a sombra triunfa à imagem de um verdadeiro protagonista de conto de fadas, enquanto o seu antigo mestre morre miseravelmente. Mas o conto não é apenas sombrio e trágico. A cena em que a sombra se separa do homem culto é coreografada com perfeição, na medida em que uma sombra segue cada movimento do corpo que a projeta. Depois, irrita o homem culto por ter perdido a sombra, mas como está a visitar um país de clima ameno, ele logo ganha uma nova. E uma das razões pelas quais a sombra consegue seduzir a princesa é que é um bailarino maravilhoso — está, claro, sempre leve nos pés. Ao longo do conto, Andersen trata cada ocorrência impossível como se fosse natural, criando um efeito que é tanto divertido como inquietante. Nos contos de fadas tradicionais, o protagonista muitas vezes parte de casa devido a algum desequilíbrio. Longe de casa, no mundo, precisa cumprir uma série de tarefas. O final feliz costuma significar que o personagem encontra uma nova casa, muitas vezes casando com uma princesa e tornando-se governante de metade de um reino. Em The Shadow, o homem culto já está longe de casa desde o início, visitando um país de clima quente antes de regressar à sua terra natal com frio. É aqui que a sua sombra anterior aparece e o manipula para trocar de papéis, tornando o homem culto literalmente a sombra de uma sombra. Os dois viajam depois para um spa. O homem culto volta a morrer. A sombra, por outro lado, começa a sua história “em casa”, já que o seu lar é onde quer que esteja o homem culto. Ela separa-se, parte para o mundo e se torna altamente bem-sucedida — ainda que através de periclitante malandrio. O triunfo último chega quando estabelece um novo lar ao casar com a princesa. The Shadow é um conto de fadas invertido em todos os sentidos possíveis. A forma como Andersen executa esta inversão é uma obra-prima e testemunha a sua aguda perceção das convenções de género e das estruturas narrativas — algo que, infelizmente, raramente tem sido reconhecido à altura que merece.

The Shadow 1847 uma inversão magistral dos contos de fadas

A Princesa e a Ervilha 1835 uma prova de que o real depende da percepção

A Princesa na Ervilha começa com a busca mundial de um príncipe por uma princesa “real”. Ele já conheceu várias esperanças ao longo do caminho, mas elas não eram realmente “reais”, e para ele só uma “verdadeira” serve. As palavras 'real' e 'true' (em dinamarquês, rigtig/virkelig) aparecem nesta históriasinha um total de nove vezes — muito contra certos truínios sobre boa escrita e o tempero da vida. Assim, quando uma potencial princesa chega ao castelo numa noite de tempestade com água da chuva a escorrer-lhe pelo cabelo e dos saltos, ela incorpora literalmente o problema de como dizer se algo é real ou não. Para saber se a convidada é o artefacto genuíno, a rainha testa-a com uma cama digna de princesa: 20 edredões empilhados sobre 20 colchões e bem no fundo, uma única ervilha. Não é uma pérola nem um diamante, é a coisa mais humilde da vida doméstica. A convidada, porém, não desperdiça nada: acorda toda inchada, pálida e pior do que quando chegou. O court apercebe-se imediatamente — apenas uma princesa de verdade poderia ser tão sensível! —, no entanto, de forma divertida, todo o exercício não os aproxima de realmente identificar uma: são as suas capacidades de observação que passam no teste, não as deles. O real, ao que parece, sabe-se a si próprio. Podemos adivinhar o que acontece a seguir, mas o que vem depois do casamento? Aqui encontramos a contribuição mais inovadora de Hans Christian Andersen para este conto de fadas tradicional: ou seja, a ervilha recebe o seu próprio final, recebendo um lugar de honra no Museu Real “onde ainda pode ser vista, desde que ninguém a tenha levado”. Um dinamarquês que lê esta história em 1835 não pôde deixar de notar essa referência ao rapto, em 1802, do tesouro nacional da Dinamarca, as Corna de Gallehus, do mesmo local. Menos óbvio é que, com esta referência, Andersen faz estourar a bolha que envolve todos os contos de fadas e lança a ervilha para o mundo real. Sentimos isso? Talvez não. Mas, por outro lado, pode ter sido roubada. “Agora, isso foi uma história real!” conclui o conto, com consciência. Não é uma história verdadeira, sublinhe-se, mas o estado impossível de ser “ficção real”. Ao contrário da nossa princesa, este conto não oferece uma resolução tidinha, o que é precisamente a riqueza da grande arte: provoca reflexão, esconde maravilha nos detalhes humildes e nunca está realmente terminado, convidando-nos a brincar na ideia de um final feliz. Pode ler a versão completa de A Princesa na Ervilha, aqui.

A Princesa e a Ervilha 1835 uma prova de que o real depende da percepção